- A senhora sabe me dizer onde encontro o próximo lugar ontològicamente sustentável?
- Meu caro senhor, eu nunca saí daqui!
- A senhora é abençoada!
O andarilho já havia andado 300 km a partir de Lisboa. A camponesa tinha um rosto sofrido, mas belo. Stewart, o neuroboy, é o nosso peregrino. Filho de pai brasileiro e mãe americana, na adolescência fora baterista de uma banda rock com influência do Nirvana. Seu pai tinha sido esquartejado pelo exército brasileiro, em 1966. Um seu companheiro de célula guerrilheira e também de cela era filho de Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo da Terra de Vera Cruz. Mas o pai de Stewart não tinha igual cunha . Resultado: se fudeu em plena ditadura brasileira.
Stewart se especializara em neuro-técnicas várias numa universidade americana. Depois do assassinato de sua mãe foi para os Estados Unidos estudar. O seu último paper, já doutor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, considerava a área do cérebro responsável pela própria investigação que fazia. Quer dizer, o gato querendo morder o seu próprio rabo. Deu no que deu. Pirou legal. Largou tudo e veio para Portugal. Stewart estava e ainda está obcecado pelos lugares ontològicamente sustentáveis. Não sabemos o que na verdade isto significa.
Parou neste momento na Covilhã, serra da Estrela. A camponesa abençoada chama-se Sofia.
Sofia deu a resposta mais perfeita possível. E é verdade, nunca saíra da Covilhã. Nem no dia em que a ovelha Beta desaparecera.
- O Senhor deseja beber um copo de leite de ovelha? - Não me chame de senhor. Meu nome é Alexandre. - Senhor Alexandre, pergunto se deseja beber um copo de leite. O senhor está fraco.
- Como é o seu nome? ... Sofia? Ah, li todos os livros da Sofia Braga. No meu blog. Tá bem, eu sei que a senhorita não sabe o que é um blog, mas no meu blog falo muito dela. - Só fala dela? - Também falava do comportamento humano. - Falava? Já não fala? - Você estudou até que ano? - Até a quarta classe. - Primário, é? - Da primária, sim. Mas não sou burra não. - Já notei. Adeus Sofia, o copo de leite de ovelha fica para uma outra oportunidade. - Oportunidade diz mãezinha que é como fio de cabelo na cabeça do careca.
E Stewart seguiu nos seus pensamentos convicto de que chegaria pelo menos até a cidade Invicta do Porto. Não bastasse o seu cajado encomendado e enviado para ele directamente de Santiago de Compostela por um colega do workshop de tai chi chuan .
Não é que se sentisse propriamente bem neste papel de personagem de romance de Paulo Coelho. Mas o que interessa isso agora que está a sós consigo mesmo?
Mas Stewart não se aguenta em pé. Sofia perturbara-lhe. Disca no telemóvel o número de seu analista, no Rio de Janeiro.
- Alô Maciel, fala o Stewart. Que horas são aí? - Aonde você está. Em Portugal? Eu lhe disse que você não devia abandonar o grupo, justamente nesta fase. Ok, ligue para o meu número com valor acrescentado. Nove um dois dois não oito, porra... - Alô, me sinto atraído por uma camponesa. Mas na minha cabeça surge constantemente que ela é a Nossa Senhora. Não aguento mais. - Ô Stewart, você sente culpa, como sabe, da morte bárbara do teu pai. Uma castração de todo o pai. Um rito pagão, como Osíris no Egipto. E sabe que eu não sigo uma orientação junguiana, pelo amor de deus. - Vá tomar no cu!
Agora é que Stewart atormentava-se mais: mandou o analista tomar no cu.
Pegou o telemóvel de jeito e o jogou no mar de nuvens, que inundava o vale aos seus pés.
Vai ou racha, pensou. E pensou em Osíris, no Egipto e no sonho de chegar à Santiago de Compostela. Esquecera Sofia.
II
Porém , ninguém é capaz de esquecer Sofia. Já saberemos como e porque.
Ela agora sabe que são oito horas da manhã e o céu está de um azul intenso. Quando Sofia desce o monte com o pequeno Pedro e se dirige ao curral da vaca Zeca, para apanhar o leite matinal, eis que vê em cima da palha que o cobre, um objeto pequeno e negro.
- Pedro, apanhe aquilo para mim. - É um telemóvel, igual ao teu.
- Dá-me, que o sei por pra trabalhar.
Pedro aperta o botão. A chamada vai para o último número discado. - Alô , Stewart, a nossa relação deixou de ser analítica, agora falamos de homem para homem. Sofia toma o telemóvel da mão de Pedro, ao meio da frase dita.
- Meu Senhor!
- Repito: agora a nossa relação é de homem pra homem. Acabou-se a análise.
- Mas eu sou mulher.
- Alô, quem está falando aí?
- Meu nome é Sofia.
- Sofia , você tá falando de Portugal? Quem te deu este celular?
- Celular?
- Escuta, Sofia, este celular não é teu. Entregue já o celular na polícia.
- Polícia?
Às três horas da tarde vemos Sofia na porta da esquadra da PSP da Covilhã. Com o celular na mão.
- Sofia, que fazes aqui? Tens um novo telemóvel? - O brasileiro diz celular. - Qual brasileiro?
Sofia liga para um número da lista e atende a Rita, uma ex-namorada de Stewart.
- Stewart, quanto tempo. Tava pensando em te ligar. Vem aí o concerto da Maria Rita lá no Canecão.
- Eu sou a Sofia. Falo da Covilhã em Portugal.
E não ouve mais nada. O sargento Martins está atento.
- Não consigo falar com o brasileiro. - Onde você encontrou este telemóvel? - No curral da vaca Zeca. - Sofia, anda cá, o telemóvel vai ficar aqui na esquadra.
III
O andarilho Stewart sobe mais um troço da serra. Agora desce. As nuvens já se dissiparam. Está fraco. Lembra-se de Sofia e do leite de ovelha. O pensamento de Nossa Senhora já não intervem. Ninguém e o nada o encobrem. O rosto de Rita vem à sua mente. Cantarola uma música de Jorge Benjor: ”Rita Jipe, menina você é um barato, com você eu faço um trato, um trato de comunhão de bens, você é minha e eu sou teu também”.
Pensa em desistir e voltar para o Brasil. Não tem mais força nem vontade. Ouve agora o ronco do motor de um carro que vem subindo a serra. Stewart incha o peito para si mesmo. Sou um peregrino. Não sou um girino. E levanta o cajado em direção ao carro. Lembra-se do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Mas tá frio. Muito frio mesmo.
4 Comments:
linda foto!
Que lindo!!!:)Tb a mim me lembra!:P
O PAGADOR SEM PRESSA
(o romance)
I
- A senhora sabe me dizer onde encontro o próximo lugar ontològicamente sustentável?
- Meu caro senhor, eu nunca saí daqui!
- A senhora é abençoada!
O andarilho já havia andado 300 km a partir de Lisboa.
A camponesa tinha um rosto sofrido, mas belo. Stewart, o neuroboy, é o nosso peregrino. Filho de pai brasileiro e mãe americana, na adolescência fora baterista de uma banda rock com influência do Nirvana. Seu pai tinha sido esquartejado pelo exército brasileiro, em 1966. Um seu companheiro de célula guerrilheira e também de cela era filho de Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo da Terra de Vera Cruz. Mas o pai de Stewart não tinha igual cunha . Resultado: se fudeu em plena ditadura brasileira.
Stewart se especializara em neuro-técnicas várias numa universidade americana. Depois do assassinato de sua mãe foi para os Estados Unidos estudar.
O seu último paper, já doutor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, considerava a área do cérebro responsável pela própria investigação que fazia. Quer dizer, o gato querendo morder o seu próprio rabo. Deu no que deu. Pirou legal. Largou tudo e veio para Portugal.
Stewart estava e ainda está obcecado pelos lugares ontològicamente sustentáveis. Não sabemos o que na verdade isto significa.
Parou neste momento na Covilhã, serra da Estrela. A camponesa abençoada chama-se Sofia.
Sofia deu a resposta mais perfeita possível. E é verdade, nunca saíra da Covilhã. Nem no dia em que a ovelha Beta desaparecera.
- O Senhor deseja beber um copo de leite de ovelha?
- Não me chame de senhor. Meu nome é Alexandre.
- Senhor Alexandre, pergunto se deseja beber um copo de leite. O senhor está fraco.
- Como é o seu nome? ... Sofia?
Ah, li todos os livros da Sofia Braga. No meu blog. Tá bem, eu sei que a senhorita não sabe o que é um blog, mas no meu blog falo muito dela.
- Só fala dela?
- Também falava do comportamento humano.
- Falava? Já não fala?
- Você estudou até que ano?
- Até a quarta classe.
- Primário, é?
- Da primária, sim. Mas não sou burra não.
- Já notei. Adeus Sofia, o copo de leite de ovelha fica para uma outra oportunidade.
- Oportunidade diz mãezinha que é como fio de cabelo na cabeça do careca.
E Stewart seguiu nos seus pensamentos convicto de que chegaria pelo menos até a cidade Invicta do Porto. Não bastasse o seu cajado encomendado e enviado para ele directamente de Santiago de Compostela por um colega do workshop de tai chi chuan .
Não é que se sentisse propriamente bem neste papel de personagem de romance de Paulo Coelho. Mas o que interessa isso agora que está a sós consigo mesmo?
Mas Stewart não se aguenta em pé. Sofia perturbara-lhe. Disca no telemóvel o número de seu analista, no Rio de Janeiro.
- Alô Maciel, fala o Stewart. Que horas são aí?
- Aonde você está. Em Portugal? Eu lhe disse que você não devia abandonar o grupo, justamente nesta fase. Ok, ligue para o meu número com valor acrescentado. Nove um dois dois não oito, porra...
- Alô, me sinto atraído por uma camponesa. Mas na minha cabeça surge constantemente que ela é a Nossa Senhora. Não aguento mais.
- Ô Stewart, você sente culpa, como sabe, da morte bárbara do teu pai. Uma castração de todo o pai. Um rito pagão, como Osíris no Egipto. E sabe que eu não sigo uma orientação junguiana, pelo amor de deus.
- Vá tomar no cu!
Agora é que Stewart atormentava-se mais: mandou o analista tomar no cu.
Pegou o telemóvel de jeito e o jogou no mar de nuvens, que inundava o vale aos seus pés.
Vai ou racha, pensou. E pensou em Osíris, no Egipto e no sonho de chegar à Santiago de Compostela. Esquecera Sofia.
II
Porém , ninguém é capaz de esquecer Sofia. Já saberemos como e porque.
Ela agora sabe que são oito horas da manhã e o céu está de um azul intenso. Quando Sofia desce o monte com o pequeno Pedro e se dirige ao curral da vaca Zeca, para apanhar o leite matinal, eis que vê em cima da palha que o cobre, um objeto pequeno e negro.
- Pedro, apanhe aquilo para mim.
- É um telemóvel, igual ao teu.
- Dá-me, que o sei por pra trabalhar.
Pedro aperta o botão. A chamada vai para o último número discado.
- Alô , Stewart, a nossa relação deixou de ser analítica, agora falamos de homem para homem.
Sofia toma o telemóvel da mão de Pedro, ao meio da frase dita.
- Meu Senhor!
- Repito: agora a nossa relação é de homem pra homem. Acabou-se a análise.
- Mas eu sou mulher.
- Alô, quem está falando aí?
- Meu nome é Sofia.
- Sofia , você tá falando de Portugal? Quem te deu este celular?
- Celular?
- Escuta, Sofia, este celular não é teu. Entregue já o celular na polícia.
- Polícia?
Às três horas da tarde vemos Sofia na porta da esquadra da PSP da Covilhã. Com o celular na mão.
- Sofia, que fazes aqui? Tens um novo telemóvel?
- O brasileiro diz celular.
- Qual brasileiro?
Sofia liga para um número da lista e atende a Rita, uma ex-namorada de Stewart.
- Stewart, quanto tempo. Tava pensando em te ligar. Vem aí o concerto da Maria Rita lá no Canecão.
- Eu sou a Sofia. Falo da Covilhã em Portugal.
E não ouve mais nada. O sargento Martins está atento.
- Não consigo falar com o brasileiro.
- Onde você encontrou este telemóvel?
- No curral da vaca Zeca.
- Sofia, anda cá, o telemóvel vai ficar aqui na esquadra.
III
O andarilho Stewart sobe mais um troço da serra. Agora desce. As nuvens já se dissiparam. Está fraco. Lembra-se de Sofia e do leite de ovelha. O pensamento de Nossa Senhora já não intervem. Ninguém e o nada o encobrem. O rosto de Rita vem à sua mente. Cantarola uma música de Jorge Benjor: ”Rita Jipe, menina você é um barato, com você eu faço um trato, um trato de comunhão de bens, você é minha e eu sou teu também”.
Pensa em desistir e voltar para o Brasil. Não tem mais força nem vontade. Ouve agora o ronco do motor de um carro que vem subindo a serra. Stewart incha o peito para si mesmo. Sou um peregrino. Não sou um girino. E levanta o cajado em direção ao carro. Lembra-se do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Mas tá frio. Muito frio mesmo.
Um 2007 em GRANDE!!!
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